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Os Perigos do Jejum e dos Transtornos Alimentares

A Mística Prática do Jejum

 

Durante o Ramadã, o nono mês do ano no calendário muçulmano, os fiéis realizam jejum diariamente entre o alvorecer e o pôr-do-sol. O Yom Kipur (dia do perdão) na tradição judaica, representa o dia em que Deus julga os pecados de cada um e dá sua sentença. É também o dia em que os judeus praticam o jejum. Católicos e evangélicos também utilizam a prática para manifestar sua fé. A partir destas práticas, surge um mito de que o jejum concretamente purifica o organismo.

 

Apesar dos profissionais de saúde concordarem que a liberdade de culto religioso deve ser mantida e a simbologia litúrgica respeitada, o jejum não é recomendado na rotina diária. Segundo Dr. Adriano Segal, coordenador do ambulatório de obesidade do Ambulim (Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares) do Hospital das Clínicas em São Paulo, o erro está em transformar uma manifestação simbólica em uma indicação de melhora de saúde. "Isto não procede: jejum não purifica o organismo. Para algumas pessoas (por exemplo, diabéticas, muito idosas, com alguma debilitação física importante, que usam medicação com horários fixos), chega-se a contra-indicar estas práticas, mesmo no contexto religioso, devido a riscos importantes que acarreta para a saúde", explica o médico.

 

Para ele, quando há a necessidade de jejum, a orientação é feita de uma maneira individualizada e de acordo com a situação específica. "O jejum não traz vantagens para o organismo e, de fato, sua realização de rotina deve ser evitada, a não ser em casos específicos (como realização de cirurgia que necessite de certos tipos de anestesia, coleta de exames, rituais religiosos e outros)", completa Segal.

 

O Que Ocorre Com o Organismo Durante o Jejum Prolongado?

 

Aos poucos, as reservas de glicose do organismo vão se esgotando e outras fontes de energia, como proteínas e gordura, passam a ser utilizadas para que o organismo se mantenha vivo. Quanto mais longo for o jejum, mais gordura e proteínas vão sendo consumidas. "O humor se altera (a pessoa passa a ficar mais irritável), o hálito fica ruim, a pessoa pode ter crises de hipoglicemia (que podem ser graves), a taxa metabólica diminui, entre outras alterações", explica Sílvia Franciscato Cozzolino, professora de nutrição humana da Faculdade de Ciências Biomédicas da USP.

 

Dentro de um longo período, uma alteração grave pode ser a chamada hipoglicemia rebote, ou seja, a pessoa pára de produzir insulina, pela não ingestão de carboidratos. Quando o jejum é interrompido, há uma elevada secreção de insulina, às vezes maior do que a necessária, levando à hipoglicemia. "Quanto mais tempo o indivíduo fica sem comer, mais se acostuma à privação. Depois de um jejum prolongado, não é possível, da noite para o dia, voltar a comer na mesma quantidade de antes. É preciso ter uma readaptação paulatina", conclui Sílvia.

 

Mas até que ponto o organismo agüenta ficar em jejum? "Em média, podemos dizer que um paciente agüenta ficar sem comer por 60 dias", afirma Adriano Segal. "Teoricamente, uma pessoa de 70 kg tem subsídios energéticos para agüentar um jejum por 90 dias. Mas ninguém chega a esse ponto, porque acontecem outros problemas antes disso", explica o especialista.

 

Esses problemas são principalmente as infecções. Inicialmente, o organismo tira do fígado a glicose. O órgão armazena o glicogênio, que é uma espécie de reserva de glicose, que dura para um jejum de 12 horas. O organismo também tira energia da gordura do tecido adiposo, o que posteriormente pode provocar formação de substâncias tóxicas para o organismo, e do tecido muscular. Porém, com todos esses mecanismos, cai a resistência do paciente, que fica mais sujeito a infecções. "Com o corpo debilitado e um quadro de infecção, a pessoa pode morrer. O paciente, após um jejum prolongado, pode vir a ter problemas no pulmão ou no sistema nervoso, por exemplo", explica Segal.

 

Em pessoas com anorexia nervosa e outros transtornos alimentares, quadros depressivos e ansiosos estão diretamente associados à prática do jejum. Uma das alterações que ocorrem em pessoas predispostas a estas doenças é a realização de refeições desproporcionalmente grandes, com a sensação de perda de controle sobre o quanto e o que se come (os chamados episódios de comer compulsivo). Assim, para pacientes obesos, jejuns de mais de 4 horas são contra-indicados, a não ser, em situações específicas.

 

Transtornos Alimentares: Doenças da Ditadura do Corpo Ideal

 

A anorexia nervosa é, sem dúvida, o mal das mulheres do final do século 20. Os homens são apenas 5% dos pacientes. São tantas as mulheres que sofrem da doença, que os ambulatórios do Hospital das Clínicas e do Hospital São Paulo estão sempre lotados, recusando pacientes. Não há estatísticas precisas, mas sabe-se que cerca de 20% das anoréxicas morrem. "A doença pode começar de uma hora para outra. A pessoa acha que está gorda e começa a fazer regime. No começo, ela tem apetite, mas se força para não comer. Depois de algum tempo de jejum, não sente mais fome e recusa qualquer alimentação", diz o psiquiatra Táki Cordás, coordenador-geral do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas.

 

A inocente dieta inicial vai se tornando, aos poucos, idéia fixa. A mulher perde peso rapidamente, mas não se contenta. Olha-se no espelho e encontra culotes e celulites invisíveis aos outros. Recusa também conselhos de parentes e amigos e, apesar de magra, mantém uma hiperatividade.

 

Depois de alguns meses, ultrapassa a chamada "barreira da fome": quando o estoque de energia começa a baixar, sentimos fome, ficamos agitados, ansiosos por comida. A anoréxica suporta essa fome e desencadeia um processo interno. O corpo começa então a "economizar" tudo, diminuindo o gasto de energia: produz menos calor (sente frio o dia todo); queima gordura em grande quantidade, produzindo muita cetona (o hálito fica ruim) e a menstruação começa a falhar (ausência de pelo menos três ciclos consecutivos). A fraqueza aparece: há cãibras nas pernas, sudoreses, apatia, o cabelo cai e as unhas tornam-se quebradiças. Em geral, quando chega a esse ponto, a anoréxica precisa ser internada para receber alimentação parental e evitar a morte. "Em 90% das vezes, é a família quem interna. Os parentes percebem algo errado e não agüentam mais as brigas. A pessoa muda completamente de personalidade", afirma o psiquiatra.

 

O tratamento da doença pode ser tão sofrido quanto o de um dependente de drogas. Na anorexia nervosa, o nível de beta-endorfina, substância que provoca bem-estar, aumenta, podendo subir até 50 vezes acima do normal. "Quando você começa a alimentar uma pessoa que está anoréxica há muito tempo, esse nível de endorfina cai, e ela perde a sensação de bem-estar, sente muita angústia. É como se ela fosse viciada na própria endorfina que o corpo produziu", diz Freddy Eliaschewitz, chefe do Departamento de Endocrinologia do Hospital Heliópolis. Além disso, há o pânico de engordar. "É muito difícil fazer a paciente aceitar comida no início. Há mulheres que chegam com 27 kg e com medo de engordar", afirma o médico.

 

Na primeira fase, a paciente precisa ser hidratada, porque a maioria já parou de beber líquidos com medo de engordar. É difícil tratar a anorexia. As pacientes, em geral, precisam chegar ao fundo do poço para começar a melhorar. Isso significa passar bem perto da morte, perder 40% do peso e mal conseguir ficar de pé. Com o tratamento, a maioria engorda e volta a menstruar, mas muitas continuam obcecadas com o peso. De acordo com os especialistas, é difícil haver cura total.

 

Fonte: Uol

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